Sempre tive receio da
verdade. Não aceitava que tudo aquilo que eu sentia fazia parte de
mim e faria parte da minha história para o resto da vida. Criei uma história
repleta de desafios e aventuras que hoje me enobrece. Exigi de mim a força do
disfarce, como aqueles super-heróis que usam capa para sua identidade real não
ser revelada e correr perigo, só eu sabia onde encontrar a verdade.
Por um lado, tinha minha mãe, com ela
eu vivia um pouco a minha verdade. Na realidade, eu também disfarçava, mas era
sutil e aceitável. Eu tinha a chance de crescer, crescia como ser
social. Balé, cozinha, passeio a praias e lojas de estética
preenchiam minha agenda semanal. Fazia tudo com muito prazer, embora minha mãe
visse esses costumes um tanto quanto estranhos.
Às sextas-feiras, dias em que
oportunamente tinha uma liberdade mais flexível, ia até a uma casa a três
quadras de onde morava para lá dona botões, como chamava carinhosamente a
senhora Iris, me ensinar a costurar. Os grandes vestidos que eram vendidos na
principal loja da cidade, Fina Estampa, eram produzidos por dona Botões e com
minha ajuda, sendo eu um simples aprendiz que me arriscava todas as
sextas-feiras para colaborar um pouco com o sucesso das belas roupas que eram
cobiçadas por muitas mulheres, principalmente pela honrosa dama do Governo.
Por outro lado, tinha meu pai. Um
líder militar que possuía mais comprometimento com o trabalho do que com a
família. Em sua vontade, eu deveria seguir a mesma ocupação. Como nunca pareci
ser tão forte como ele esperava me ver todas as vezes em que voltava para casa,
exaustivamente teria que fazer uma maratona de exercícios junto com ele. Era
uma tortura. Não via a hora de terminar os exercícios e tê-lo de volta ao
seu oficio. Eu não demonstrava desgosto com ele diante do que me
propusera, pois, meu pai sofria de uma grave doença, hemofilia, um problema no
sangue.
Nesta última vinda de meu pai a nossa
casa, onde normalmente vem de 15 em 15 dias, fizemos algo diferente, nós três:
Eu, minha mãe e meu pai, fomos juntos ver uma peça de teatro e ao voltarmos
para casa paramos em uma sorveteria e tomamos um delicioso sorvete, eu escolhi
o mesmo sabor que o de meu pai, baunilha, já minha mãe optou pelo sabor de
morango. Ficamos por 20 minutos tomando sorvete e conversando. Minha mãe
comentava sobre as responsabilidades e que desejava fazer um jardim no quintal
de casa, já meu pai falava sobre os seus deveres na corporação militar e
insistia em dizer que gostaria de me ver em combate. Terminou dizendo que iria
me inscrever em um esporte de lutas. Terminamos o papo e o sorvete, voltei para
casa calado e reprimido. Percebi que quanto mais fingia, mais preso eu ficava a
uma história sufocante.
No dia seguinte meu
pai volta ao trabalho, ficando por mais 15 dias afastado da família. Bom, ele
se foi, mas deixou um papel, era a matricula no curso de judô, um tipo de
esporte de lutas marciais. Na matricula constatava-se que o curso seria
as sextas-feiras, o único dia que possuía para aprender a costurar com a dona
Botões. Até iria me esforçar para ir, contanto que não fosse nesse dia.
Fui uma vez á aula de judô, por
sinal, havia um garoto conhecido, era o Arthur, meu amigo de escola e morava na
mesma rua que eu. Vendo ele, fiquei mais tranquilo, porém não desejava estar
ali. Nada tinha que ver comigo.
Pensei, pensei e tomei uma decisão.
Direi ao meu pai que eu estou indo as aulas de lutas marciais sem estar indo,
logo estarei na casa de dona Botões e seguirei ajudando a fazer novos modelos
de roupas. Por coincidência, a casa de dona Botões fica perto a academia de
luta, dessa forma, não perderei tanto tempo e posso demonstrar que sempre vou
ao curso.
Nesta situação, estive cinco vezes
aprimorando minha arte, modelar. As roupas que costurava já saiam praticamente
perfeitas e prontas para estar no corpo de toda mulher de bom gosto.
Certo dia, dona botões ficou doente e
me deu a missão de criar e fazer um modelo de roupa exclusivo para uma popular
senhora de grande prestigio na cidade. Nossa! Dona botões me deu uma
responsabilidade inigualável, não sei como me sairei, mas honrei a confiança de
dona Botões, cuja oportunidade me dera expressando bons elogios.
Enquanto eu ia produzindo o look para
esta importante cliente, eu ia também tentando convencer sobre minha presença
nas aulas de luta. Dentro de um mês fiz um deslumbrante traje acompanhado de um
elegante chapéu. Não me coube elogios de dona Botões e da dona.
Experimentei uma felicidade grandiosa.
Passaram-se mais quinze dias e meu
pai mais uma vez retornou. A casa foi tomada por um fluxo de fortes emoções.
Minha mãe já farta de múltiplas tarefas discute com meu pai, o clima ficou
tenso. Mas depois, a empolgação de meu pai se sobressaiu questionando-me sobre
as aulas de lutas. Ele estava mais empolgado que eu. Nesse caso, tentei
ao máximo passar segurança de que tudo ia bem e claro, já estava dominando
todas as técnicas de golpes. Só não contei com a iniciativa de sua parte em
testar minha força e agilidade. Foi desesperador, porque não estava indo ao
curso e consequentemente não sabia conduzir nenhum gesto corporal de ataque e contra-ataque.
Para me sair da situação, menti alegando que devido aos pesados exercícios que
vinha fazendo ultimamente estava sentindo dores no corpo. Foi uma justificativa
certa. Acreditou e me deixou livre de demais testes. Ele veio para passar mais
dias do que o comum, mas o árduo trabalho lhe solicitou urgentemente para um
conflito armado.
Sua ausência durou quatro dias,
voltou cansado e abatido. Eis que resolveu ficar conosco. Apesar de saber que a
qualquer momento ele poderia descobrir minhas idas a casa de costura, mantive
minha rotina.
Uma manhã de
sexta-feira, meu amigo Arthur vai até minha casa e convida para jogar futebol.
Eu não queria, tinha algo mais interessante para fazer. Recusei o convite e lhe
disse que ia a um curso. Meus pais se aproximam e tentam me incentivar a ir, no
entanto, não adiantou, afirmei e reafirmei que não iria. Meu pai aceitou minha
decisão, relatando ao Arthur que desde quando ele me inscreveu no curso de judô
que tal esporte se tornou meu preferido. Arthur sarcasticamente informa ao meu
pai que fazia parte do mesmo curso no qual havia me matriculado, entretanto, só
me viu uma vez participando das lutas e inteirou dizendo que eu não levava
nenhum jeito para luta. Isso foi uma aflição.
Por cinco segundos pairou um silencio,
certamente seria o tempo suficiente para gerar várias perguntas na cabeça de
meus pais. Logo depois, a voz de meu pai é ouvida exprimindo irritação.
Pai: Se você não estava no curso de
lutas marciais onde o matriculei, onde você esteve todos esses dias uteis de aulas?
Novamente o ar de tensão dominava
todo o nosso lar e dessa vez me coloca uma sentença. Eu tenho que escolher;
seguir fugindo da verdade ou permitir a verdade aparecer naquele ambiente que
muito me causa amargura e agonia. Resolvi agir e agirei á meu favor. Tremi, meu
coração pulsou mais forte e quase me entro em um colapso nervoso. Mas ali eu
poderia dar um novo caminho a minha história. Com determinação tratei de dar
uma resposta ao meu pai, como ele sempre me ensinou, temos que ser firmes.
Marcelino: Estive na casa de dona
Botões, a costureira que faz roupas para a cidade, ela me ensinou a costurar e
quero continuar fazendo roupas.
Com essa resposta, meu pai arregalou
os olhos. Fez uma expressão furiosa e tremendo a boca falou:
Pai: Você é bicha? Eu não tenho filho
bicha!
Minha consciência precisava ficar em
paz, já expus o serviço em que prefiro prestar as pessoas, ao invés de
defendê-las com força e destreza masculina, solucionei todas as questões
admitindo toda a verdade, consentindo a existência de gostos femininos sobre um
corpo masculino.
Marcelino: Sim! Não sou a bicha que
você fala, mas sou a pessoa que pretendo ser.
A partir de todas essas descobertas e
confusões emocionais um duelo de razões se inicia entre meus genitores.
Pai: Você educou muito mal esse filho
que me deu.
Mãe: Você era muito ausente! Nunca
trabalhou dentro de casa para impedir que isso acontecesse.
Pai: Então você resolveu me
substituir por carinho demais? Homem não tem que receber carinho, homem nasce
para ser forte e não feitos de mimi. Quem se machuca são vocês mulheres.
Minha mãe não tinha culpa por eu ser
o que meu pai queria. Procedi da maneira mais afável, ainda que não conseguisse
segurar as emoções, procurei dirigir o foco de meu pai a mim.
Marcelino: Eu
queria ser hétero, gostar de mulher, mas não consigo. Desde criança eu
instigava em ter contato físico com outro corpo semelhante ao meu. Mas criei um
comportamento sexual esperado por vocês. Depois comecei a perceber nos
primeiros desejos que eu vivia algo diferente dentro de mim. E o que fazer se
os desejos que sentimos entram em choque com a "sexualidade correta"
que me foi ensinada?
Pai: Isso é um absurdo! O que mereci
para ser punido assim?
Observei que diante de toda
euforia, minha mãe externava uma sensibilidade ao meu ser, pressenti um certo
acolhimento, mesmo estando interiormente decepcionada. Ao contrário de meu pai,
que rejeitou tudo o que disse, ainda me rejeitou em sua vida. Pediu-me para
naquele mesmo exato momento me retirar de casa e deixar ele e minha, pois ali
não haveria espaço para um erro. Foi uma ordem e minha mãe demonstrando
um pouco de comoção não se arriscou em desacatar a ordem exposta pelo marido e
pai de seu único filho. Fui embora do local onde cresci.
Fui até dona botões, agora não
poderia mais ajuda-la, mas iria pedi-la para abrigar-me em sua casa. Assim fui,
era minha esperança e motivação de viver. Chegando bati na porta, bati umas
três vezes ate que uma de suas vizinhas me informa que dona Botões precisou
viajar, um de seus filhos se acidentou e provavelmente iria cuidar dele e
ficaria longe das costuras durante o tempo de recuperação do filho.
Perdi o rumo. Me vi ainda mais
triste que o normal e desacompanhado nas ruas. Fiquei esgotado de tanto andar e
procurar um destino em que eu pudesse estar seguro e onde pudesse
descansar. No final do dia topei com um calçadão ocupado por aves e um garoto,
aparentava idade igual a minha, uns dezessete a dezoito anos. Ele sim, foi um
gosto melhor que costurar. Chamou-me para sentar ao seu lado e me ofereceu umas
migalhas de pão. Notei que era só aquele alimento que possuia. Com vergonha,
aceitei o pouco que tinha para comer.
Naquele instante nasce um carinho
verdadeiro. Conversamos, fomos nos conhecendo. Eu lhe disse que gostava muito
de moldar estilos de roupas para mulheres. Ele parecia entender bem do que
estava falando. Mas não gostava, apenas apreciava. Muito experto, experiente
nas veredas da vida, conseguiu um papel, me deu um pouco de nojo, estava sujo e
fedido, contudo, havia espaço suficiente para desenhar um modelo de roupa. Sim,
essa foi a ideia dele. Me deu um lápis e comecei a desenhar. Ao terminar uma
ilustrativa imagem: uma calça comprida, uma blusa curta e uma outra longa blusa
por cima que se aproximava ao meio das pernas. Para completar, desenhei
sugestivos acessórios, no qual deixaria a suposta compradora daquele modelo com
status social incomparável a uma imperatriz.
Ao ver a figura de uma roupagem
extremamente distinta, o garoto evidenciou em suas expressões faciais encanto.
Não pude corresponder diferente, contraí a soma de satisfação.
Aquele papel não ficou ali, Eduardo,
como se chamava, o jovem que me fazia companhia, pegou a substancia constituída
por elementos fibrosos de origem vegetal e levou a uma bela moça, no qual
representando pouca idade, era uma delegada. Sem demora, o modelo tomou forma
concreta nos melhores tecidos. Não fiquei somente em um único modelo,
me vieram convites para construir novas roupagens. Ganhei notas que rapidinho
me tirariam da rua. Fui muito grato a Eduardo, nos aproximamos cada vez mais,
já existia entre nós um sentimento singular, acredito que se manifestou o amor
entre seres das iguais condições sexuais.
Posso dizer que que estou brilhando.
Comprei uma casa, me tornei estilista, assumi minha verdade, estou sendo
requisitado fora do país. Foi um erro que deu certo.
Sendo reconhecido em todos os
patamares do mundo, fui convocado a não só preparar vestuários, mas a desfilar.
Isso foi o maior reconhecimento que alcancei. Com certeza, eu deveria
comemorar. Fui com Eduardo ao calçadão, lugar que mudou os meus traços
memoráveis, e neste local distribui solidariedade com os que permaneceram
vivenciando os imprevisíveis fatos da existência humana. Uma parte da gratidão
por minha parte foi feita. Sai daquele espaço físico ignorado por grande
maioria das pessoas, grande em retidão.
Abri a porta de meu carro e ao sair,
vejo uma senhora, apresentava estado de plena angustia. Era difícil de
acreditar, mas a senhora que estava a minha frente era minha mãe. Desci do
carro e a cumprimentei. Um olhar preocupante foi a maneira em que ela me cumprimentou.
Pelo visto algo de muito ruim se passava a ela. Imediatamente confirmei que
algum péssimo acontecimento a fazia chegar até a mim angustiantemente. Minha
mãe me passava a triste noticia de que meu pai se encontrava quase morto em um
hospital, a doença o detinha. Meu pai precisava urgentemente de uma transição
de sangue e eu era o compatível com o mesmo sangue que ele.
Claro. Pedi para minha mãe entrar no
carro e irmos o quanto antes salvar a vida do meu pai. Chegamos e pelo que o
médico falou, o estado de saúde se agravou repentinamente. Aos prantos minha
mãe tenta consolar-se em meu ombro, deixando-me apreensivo. Decidido, pedi que
me levasse para vê-lo e que prontamente me fizesse o procedimento necessário
para eu doar meu sangue para meu pai.
Decorrente ao modo delicado em que se
encontrava meu pai, o processo de transfusão de sangue durou três horas. Uma
hora depois os sinais vitais de meu pai melhoram, e chega o diagnostico que a
vida do meu pai já não estava mais ameaçada. Sabendo que a situação se
amenizava, voltei para casa, pois precisava repousar.
Um dia depois, volto ao hospital para
saber como se mantinha a saúde de meu pai. Não pude prever que ele superou
aquela circunstancia deprimente. No quarto em que vivia o tratamento, o alcancei
acordado conversando com minha mãe. Foi um momento surpreendentemente
emocionante.
Pai: Me perdoe filho. Volte para
nossa casa. Eu o quero junto comigo e sua mãe. Eu, você e sua mãe. A minha
família. Seja você mesmo o filho que deseja ser para mim.
Inesperadamente ouço as mais tocantes
palavras da minha vida. Não contive as lagrimas, e me refiz dando um longo e
afetuoso abraço aos meus pais. Minha mãe, havia falado que eu doei sangue
para vê-lo vivo e sabia que minha vida havia se transformado afortunadamente.
Eduardo
se aproximou da porta do quarto e eu pedi para entrar. O apresentei a minha
família como meu companheiro fiel. Confesso que ainda tive medo de ser
rejeitado, mas não. Fui muito bem acolhido, e por ventura, meu pai exprimiu em
boca e em corpo o orgulho de ter-me de volta acompanhado de um garoto com quase
as mesmas vontades sexuais que eu.
Pai:
Seja bem-vindo a família
Foram as receptivas palavras que meu
amado Eduardo recebeu de meu querido ´pai.
Os sentimentos mais sinceros e
harmoniosos preenchiam aquele lugar. A luta que eu precisava enfrentar era o
simples fato de fazer o que desejava considerando a verdade que há dentro de
mim.